Acordou cedo, com o barulho das vozes que passavam em frente ao barraco em que morava sozinho com a mãe desde que o pai fora assassinado por policiais militares. Lembra da mãe chorando e contando para uma vizinha que o pai estava voltando do trabalho quando, em meio à correria motivada por uma suposta apreensão de drogas, o pai fora parado, obrigado a descer da bicicleta. Tremia tanto que a sacola de frutas, que comprara no mercadinho perto, caiu no chão. Desesperado, ele tentou recolher as frutas que rolavam. Queria só uma delas: a maçã vermelhinha que escolhera amorosamente para seu menino. O movimento, mal interpretado pelos homens da polícia, fez com que um deles atirasse. O pai caiu, e o sangue vermelho ficou nas pedras por um bom tempo. A bicicleta sumiu. A maçã, contou uma testemunha, foi retirada da mão do pai pelo mesmo policial. Ele a examinou cuidadosamente, limpou-a na farda suja de poeira e levou-a à boca.
O menino despertou de suas lembranças, pegou sua caixa de engraxate e foi para a pequena praça. Saíra sem café, pois, no barraco, na semana, tudo era um vazio. Sem comida, sem o pai, sem futuro. Mal encostou a caixa no chão, viu o homem que se aproximava sorridente. Era o dono da fruteira onde o pai comprara as maçãs. Ele estendeu o sapato roto e o menino começou a lustrar. “Capricha aí, hein?”. O homem continuava a sorrir. Quando o menino terminou o serviço, ele tirou do bolso do casaco meio encardido o pagamento: uma maçã vermelhinha.
O menino pegou a mação no ar, limpou-a no calção, olhou-a demoradamente, apertando os olhos. De que é feita a maçã? Mordeu-a e sorriu. Por fora, ela é vermelha, cor do sangue do pai que ficara entre as pedras; por dentro, tem gosto de amor e de saudade.
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